sábado, 4 de abril de 2015

Binômio eleitoral: conquista das cidadãs francesas – por Dalmo de Abreu Dallari*

             Pelo conjunto de sua produção intelectual a França está, sem qualquer dúvida, entre os países que mais contribuíram para a conscientização da dignidade essencial da pessoa humana e, em decorrência, para as reflexões e decisões políticas e jurídicas sobre os direitos humanos fundamentais. Entretanto, contraditoriamente, a França foi o país de grande expressão internacional que mais resistiu ao reconhecimento e à garantia dos direitos políticos para as mulheres. Por isso mesmo merece especial referência uma importante e original inovação que acaba de ser introduzida no sistema eleitoral francês, dando efetividade à proclamação teórica e genérica da igualdade dos direitos de cidadania de homens e mulheres.
                 Relembrando, em linhas gerais, os antecedentes históricos, verifica-se que já no século XVIII, quando da eclosão da Revolução Francesa, foi aprovada pela Assembleia Nacional, em 1789, uma proclamação denominada "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", que significou um avanço em termos de afirmação da existência de direitos fundamentais inerentes à condição humana, mas que foi duramente criticada por lideranças femininas da época, porque a expressão "Direitos do Homem" tinha significado discriminatório, não incluindo as mulheres. Para se ter ideia da importância e da gravidade dessa divergência, basta lembrar que uma das mais atuantes líderes femininas de então, Olímpia de Gouges, publicou logo em seguida uma "Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã", o que despertou reações indignadas e contribuiu para que ela fosse declarada inimiga do povo e condenada à pena de morte, tendo sido guilhotinada em 1793.
                Na realidade, a denúncia do caráter discriminatório, com exclusão das mulheres dos direitos da cidadania, tinha fundamento nas práticas sociais e na legislação, sendo consagrada, inclusive, nas Constituições francesas, que até hoje foram em número de quinze, só tendo sido eliminada a discriminação na Constituição atual, de 1958. O primeiro passo para a eliminação da marginalização política das mulheres foi dado ao término da segunda guerra mundial, quando, expulso o invasor de seu território e reconquistada a liberdade as novas lideranças políticas designaram o General Charles De Gaulle, grande herói da resistência, para a chefia de um governo provisório. Visando o restabelecimento de uma ordem democrática ele convocou eleições municipais para os meses de abril e maio de 1945, dispondo que deveriam votar « todos os franceses maiores de 21 anos, homens e mulheres ». Foi essa a primeira vez na história da França em que as mulheres exerceram direitos políticos, participando, como eleitoras. Ainda no ano de 1945 foi eleita pelo povo uma Assembleia Nacional Constituinte e, também aqui é importante assinalar, pela primeira vez foram eleitas mulheres para participação numa Assembleia francesa.
A partir de então intensificou-se bastante a participação feminina, buscando-se o estabelecimento de mecanismos que dessem efetividade à igualdade dos direitos políticos de homens e mulheres proclamada na Constituição. Um passo importante em tal sentido foi dado por meio da lei eleitoral 2007-128, de 31 de Janeiro de 2007. Por disposição do artigo 72 da Constituição, foi estabelecido um sistema de governo incluindo coletividades territoriais, integradas por comunas, departamentos e territórios de além-mar, estabelecendo-se que as comunas se auto-administram livremente, por Conselhos eleitos pelo povo. Essa lei dispôs que a lista de candidatos deverá ser composta, alternativamente, por um candidato de cada sexo, estabelecendo ainda que cada candidato deveria ter um suplente e que os candidatos e respectivos suplentes deverão ser de sexos diferentes. Essas regras já contribuíram significativamente para o aumento de mulheres nos órgãos representativos.
                    Finalmente, uma inovação muito criativa e de enorme importância prática foi introduzida pela lei 2013-403, de 17 de Maio de 2013. Por disposição dessa lei, os então chamados Conselhos Gerais passaram a denominar-se Conselhos Departamentais, mas a inovação de fundamental importância está consagrada no artigo 3° dessa lei, que assim dispõe: "Os eleitores de cada Departamento elegem para o Conselho Departamental dois membros de sexos diferentes, que se apresentarão num binômio de candidatos com os nomes inscritos em ordem alfabética na cédula de votação". Aí está a grande inovação, o binômio eleitoral. No momento de votar o eleitor recebe uma cédula de votação na qual estarão inscritos os nomes do candidato ou da candidata por ele indicado e seu par no binômio, por ordem alfabética. Assim, o eleitor vota, necessariamente, em dois candidatos, um de cada sexo. Aí está o binômio eleitoral, usado pela primeira vez nas eleições departamentais realizadas em Março de 2015. As eleições compreendem dois turnos, levados a efeito nos dias 22 e 29 deste mês, consagrando, pela primeira vez e com notável criatividade, o binômio eleitoral, que deverá assegurar, efetivamente, a igualdade dos direitos de cidadania para homens e mulheres.
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*Dalmo de Abreu Dallari é jurista e advogado.

(Artigo publicado no informativo Migalhas nº 3.589, de 2 de abril de 2015)