quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Brasil : Voto nulo (II) – Por decisão da Justiça Eleitoral

             Além do voto nulo por ato do eleitor, do qual tratamos no post anterior, existe também no direito eleitoral brasileiro a possibilidade de que votos dados pelo eleitor a determinado candidato sejam declarados nulos ou sejam anulados pela Justiça Eleitoral.
            De acordo com o art. 220, é nula a votação:  I - quando feita perante mesa não nomeada pelo juiz eleitoral, ou constituída com ofensa à letra da lei;  II - quando efetuada em folhas de votação falsas; III - quando realizada em dia, hora, ou local diferentes do designado ou encerrada antes das 17 horas;  IV - quando preterida formalidade essencial do sigilo dos sufrágios; V - quando a seção eleitoral tiver sido localizada com infração do disposto nos §§ 4º e 5º do art. 135. 
            De acordo com o art. 221, é anulável a votação: I - quando houver extravio de documento reputado essencial;  II - quando fôr negado ou sofrer restrição o direito de fiscalizar, e o fato constar da ata ou de protesto interposto, por escrito, no momento; III - quando votar, sem as cautelas do Art. 147, § 2º:  a) eleitor excluído por sentença não cumprida por ocasião da remessa das folhas individuais de votação à mesa, desde que haja oportuna reclamação de partido; b) eleitor de outra seção, salvo a hipótese do Art. 145; c) alguém com falsa identidade em lugar do eleitor chamado.
        O art. 222 estabelece que é também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o Art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei.
            Além desses dispositivos do Código Eleitoral, outros há no ordenamento jurídico que estabelecem a cassação do diploma ou a perda do mandato eletivo pelo cometimento de irregularidade atentatória à lisura do pleito, e a consequente anulação dos votos dados ao candidato vencedor da eleição e condenado pela Justiça Eleitoral.
Cumpre mencionar as hipóteses de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude, a fundamentar a propositura de Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, prevista na Constituição (art. 14, § 10) ; de irregularidade relativa à arrecadação e aos gastos de recursos em campanhas eleitorais (art. 30-A da Lei nº 9.504/97) ; de captação ilícita de sufrágio (art. 41-A da Lei nº 9.504/97) ; da prática de condutas vedadas a agentes públicos em campanhas eleitorais (art. 73, § 5º, da Lei nº 9.504/97).
São dispositivos que visam a assegurar a sinceridade do escrutínio, e que partem do princípio de que há ocorrências que tornam inválida a manifestação do eleitor, embora ele tenha escolhido esse ou aquele candidato. E que conferem à Justiça Eleitoral o poder de declarar nula a votação ou de anulá-la, e de determinar a cassação do diploma do eleito ou a perda do mandato eletivo.
            Há que se mencionar ainda a possibilidade de perda do mandato eletivo em razão de indeferimento do pedido de registro de candidatura, pela ausência de uma das condições de elegibilidade previstas na Constituição (art. 14, § 3º) ou por incidência de alguma das causas de inelegibilidade previstas na LC nº 64/90 (Lei das Inelegibilidades), com redação dada pela LC nº 135/10 (Lei da Ficha Limpa).
            Como dito, a condenação pela Justiça Eleitoral com fundamento em qualquer dessas hipóteses gera a anulação dos votos dados ao candidato, que pode já ter sido eleito e estar no pleno exercício do mandato eletivo obtido irregularmente.         
            Nas eleições majoritárias, para a chefia do Poder Executivo nas três esferas (presidente, governador e prefeito), sempre que a nulidade da votação, nulidade essa reconhecida pela Justiça Eleitoral, com base em qualquer dos referidos fundamentos, atingir mais de metade dos votos, deve ser marcada nova eleição, denominada suplementar.
            É o que se depreende do disposto no art. 224 do Código Eleitoral:
Art. 224. Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.
Houve quem alegasse a inconstitucionalidade superveniente do disposto no art. 224 do Código. Isso porque o disposto nesse artigo não teria sido recepcionado pela ordem constitucional instaurada em 1988. O fundamento seria a norma contida no art. 81 da Lei Maior: “Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga. § 1º -- Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei. § 2º -- Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores”.
Para os defensores da tese da inconstitucionalidade, a incompatibilidade entre os dois textos estaria no fato de que a Constituição não estabelece condições, como faz o art. 224 do Código, para a realização de nova eleição ; assim, seria sempre devida a realização de nova eleição, mesmo que o número de votos invalidados fosse inferior à metade, sendo inconstitucional a investidura do segundo colocado. 
Até o presente momento essa tese não foi acolhida pela maior parte da doutrina nem pela jurisprudência. Nas palavras de José Jairo Gomes[1], “enquanto o art. 224 cuida da validade da eleição, que é requisito indeclinável da proclamação dos resultados e diplomação dos eleitos, o artigo 81 estabelece critérios para o preenchimento dos cargos que alude em caso de vacância ocorrida durante o exercício do mandato, pressupondo, portanto, que os cargos já estejam regularmente preenchidos e seus titulares devidamente investidos. Na verdade, o artigo 81 visa evitar que haja vácuo no poder estatal em razão de vicissitudes ocorridas durante o exercício do mandato que levam à vacância deste. A investidura em cargo público-eletivo decorre da diplomação, a qual requer a proclamação do eleito e a validade da eleição. Destarte, tais dispositivos operam em momentos lógica e juridicamente inconfundíveis, regulando situações diversas, sendo impossível haver conflito normativo entre eles. O conflito, se houver, é meramente aparente.”
Segundo essa maneira de ver, o art. 224 do Código foi recepcionado pela Constituição de 1988, sendo correta a interpretação a contrario sensu desse artigo, segundo a qual se os votos anulados do vencedor forem inferiores à metade, os votos dos demais candidatos permanecem válidos, e a vitória deve ser atribuída ao segundo colocado.
Além da constitucionalidade, a legitimidade dessa solução também já foi posta em dúvida, pela razão de que a eleição suplementar teria a finalidade de evitar que a minoria assumisse o poder, devendo ser prestigiado o princípio da maioria; e também porque o segundo colocado não foi eleito, não devendo assumir a chefia do Poder Executivo, sendo necessária a realização de novo certame político. Porém, há que se levar em conta a ponderação feita por José Jairo Gomes [2]  : “a chapa vitoriosa só o foi em virtude do benefício propiciado pelo abuso de poder, do qual decorreu a anulação dos votos e a conseqüente extinção dos mandatos. Não fosse isso, é razoável pensar que o segundo colocado teria se sagrado vencedor ; só não o foi porque as eleições ficaram desequilibradas em seu desfavor. E mais: com a anulação, deixam os votos de ser computados para todos os efeitos, avultando a posição do segundo colocado que, na verdade, passa a ocupar o primeiro lugar do certame”.
Note-se que o art. 224 do Código foi redigido tendo em vista eleições majoritárias decididas por maioria simples, em um turno só, como ocorria na época em que o Código entrou em vigor; porém a Constituição de 1988 prevê a realização de eleições em dois turnos, razão pela qual o TSE teve que esclarecer se o art. 224 do Código aplica-se à hipótese anulação de votos por abuso cometido em eleição decidida em dois turnos.
Para as eleições gerais de 2014, o TSE dispôs, por meio da Resolução nº 23.399/13, relativa aos atos preparatórios para as eleições, que “se houver segundo turno e dele participar candidato que esteja sub judice e que venha a ter o seu registro indeferido posteriormente, caberá ao Tribunal Eleitoral verificar se, com a nulidade dos votos dados a esse candidato no primeiro turno, a hipótese é de realizar novo segundo turno, com os outros dois candidatos mais votados no primeiro turno, ou de considerar eleito o mais votado no primeiro turno; se a hipótese for de realização de novo segundo turno, ele deverá ser realizado imediatamente, inclusive com a diplomação do candidato que vier a ser eleito” (art. 222, IV).
Tudo o que foi dito, como visto, refere-se às eleições para a chefia do Poder Executivo nas três esferas.
Quanto à eleição para o Senado, a questão é raramente debatida, mas entendo que se aplica o art. 224 do Código Eleitoral. Trata-se de eleição majoritária, que obedece ao princípio da maioria simples (como eram aliás as eleições para chefia do Executivo na época em que o art. 224 foi redigido). Note-se que o art. 224 diz “Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos (...) do Estado nas eleições federais e estaduais (...) (grifamos). Ora, a eleição para o Senado é uma eleição em que a circunscrição eleitoral é o Estado, mas é uma eleição para cargo federal, hipótese que foi expressamente contemplada na letra do dispositivo. Sendo assim, se o candidato vencedor tiver obtido mais da metade dos votos, excluídos os brancos e nulos, e essa votação vier a ser anulada pela Justiça Eleitoral, deve ser convocada nova eleição. Se a votação for inferior à metade, o segundo colocado será sagrado vencedor.
 Nas eleições proporcionais (deputado federal, deputado estadual e distrital, vereador), em que concorrem candidatos em grande número, não há que se cogitar de vitória obtida com mais de 50% dos votos na circunscrição. Nessas eleições, se o pedido de registro é indeferido depois da eleição, ou se o parlamentar tem o diploma ou o mandato cassados por irregularidade cometida na campanha eleitoral, os votos respectivos são anulados e procede-se ao recálculo do quociente eleitoral. 
  


[1] Direito Eleitoral, 10ª ed., Atlas, São Paulo, 2014, p. 688.
[2]  Id., p. 690.